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terça-feira, 30 de setembro de 2014

ensaio #1 da pasta de dente

Escovei os dentes com pasta de aranha. Estava em meu banheiro quando aconteceu. A pasta caiu da escova na pia, a aranha estava lá, já convalescida pela água que havia derramado sobre seu corpo. A pasta se posicionou ao lado. Num gesto rápido, a escova abocanhou as duas substâncias que logo se misturaram entre si com a saliva entre os meus dentes sujos de ovos de gema quase crua.

Meus dentes estavam limpos e o hálito fresco. Beijei um homem depois. Duas horas da manhã, luz ainda tardia, olhei com o hálito de aranha recém desencarnada para os olhos do homem. Ele não notou o sangue aracnídeo em meus dentes. Conversamos por um tempo, arquitetura, bolores de sofá, o cheiro do cream cracker quando se demora num pote, a lua que estava em vênus e o meu desconhecimento de astrologia.

Sensação de que nada acontecera de grave naquela noite. Entretanto, morta em meus dentes a alma da aranha no momento estava a passar pelos lábios, em seguida laringe, do homem que conhecera na noite. Não me sentia culpado. Talvez, em algum lugar das células de minha gengiva, seus componentes orgânicos derramassem sal, lágrimas de mar.

Eu te quero, como a aranha que matei. Faça o mesmo comigo. Coloque-me afogada numa pia e junte-me a alguma substância parecida com uma pasta, que me purifique. Sou tão humano que o impulso é de se estar no lugar da aranha. Na verdade, da mesma que matei afogada a aranha, sou humano. Sou humano que não sou muito bem o que sinto. Rezo para que minha humanidade esteja purificada pelas entranhas da aranha cheia de essência de hortelã, da pasta de dente. Mas então olhem, de qualquer forma, desintegrei aquele corpinho magro de aranha com substância refrescante. Que defunto não gostaria de, em seu cadáver, cheirar genuinamente ao frescor do hortelã?

Sou humano deveras pasta de dente e aranha afogada.

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