Era
eu naquele momento a olhar em vasto contínuo a tristeza em forma de sombra seca
a atingir a nudez sombreada de minha alma, já devassada por uma vida seguida
por escolhas alheias, jamais minhas. Relembrei-me do Cântico Negro, ouvido e
declamado tantas vezes por você com sua cor que mais parece delicada sutileza
da criação divina, à qual, num desvio das mãos do criador, revelou-se num tom
acima das outras paletas de cores amarronzadas, já conhecidas aqui na terra. Em
verdade, tua cor, que cobre teu corpo inteiro, e tal constatação se faz muito
mais pela acentuação da beleza ao pronunciar os sons dessas palavras do que
pela obviedade, ainda que discutível, da lógica monocromática das peles dos
seres humanos, é misto de cores, é o amor a falar quando o sol bate em tua pele
e se estabiliza em beleza bruta por tua face, teus lábios africanos, teus olhos
de índia. Olhava, com olhos de coragem ao desconhecido, você em tom súbito, em
sua delicadeza não ouvia o respingar de minhas agonias noturnas – quando, em
momento da noite, já depois da escalada diária feita pela lua ao compasso das
horas, no qual ela está numa distância que faz minhas articulações e músculos
do pescoço moverem-se, redirecionando a cabeça para cima, para olhar a
branquidão cor do leite tomado antes de dormir da lua, eu deito e divago por
ter imergido fora de você – margeadas no torpor dourado solar, em meu rosto.
Você não ouvia, nem me via, mas era só pensamento em mim e nas nossas escolhas
diagramadas pelo senhor tempo. Teu rosto naquele momento era ternura e dor,
enquanto no meu, além da luz do sol, das divagações noturnas, também era cor de
desafio: eu necessitava do calor de teus braços para poder abrir forte os meus
contra o sertão que era a vida.
Por
favor, por favor eu preciso de você. E ao dizê-las, assim, dessa forma, notei
que as realmente dizia pela primeira vez. Foi naqueles poucos segundos, entre a
dança intranquila de minhas cordas vocais, minha língua e meus dentes, que
tomava, depois de tantos anos junto ao teu lado, como verdade o precisar de você. Você continuava a não
olhar-me pelos olhos, nem para qualquer outra parte, feita de carne, minha.
Você olhava para o estigma de teu demônio, rastro contínuo e pulsante: era como
órgão feito de células, com excrementos e canais de nutrição, crescia como um
câncer.
Você
me pedia, não deixe-me fechar os olhos, e eu, dizia para te acalmar menina, meu
sangue, quente, está aqui te rodeando através de meus braços apertados junto ao
teu corpo. Ilusão minha era pensar que podia acalmar-te em sensações passageiras
as tuas mágoas. Por dentro, na verdade, eu fingia ser tudo aquilo que você
queria que eu fosse, te ajudando a segurar os olhos. Mas, sabia, só quem podia
domar e sentir teu demônio era tu mesma. Não, não adianta menina esconder a dor
que sentes para numa vã sabedoria esquecê-la de tua vida. Para a dor, e aquele
ser que tu mesmas criastes, sair, era preciso, antes de mais nada, que o
assumistes como teu. Assumindo a tua dor, tu mais tarde descobririas, sentiria
pelas lágrimas jorrando em água de mar, iria viver, como pele que arrepia, a
sua humanidade: sim, você era humana. E nosso defeito é esse mesmo, não
admitimos que somos humanos, que erramos, que ludibriamos e escondemos nossas mazelas.
Tu eras humana e quando assumisse tua dor finalmente veria a delícia e a dor de
ser o que é, como dizia meu Caetano de tardes em vitrola regada a vinho, queijo
e mar.
Teu
demônio rastejava à procura da água na madeira da lavagem dos porcos. Seus
gritos não eram ouvidos por nós, nem por você menina. Seus gritos eram postos à
voz do seu coração, e os dois, o demônio e o teu coração, gritavam juntos a
poesia que é a vida. É da dor, do chorar mais infeliz que se vê a felicidade
emergindo como a inevitabilidade do raiar do dia. Entendes, menina, entendes
que teu demônio precisa da atenção de teu coração e não de teus olhos cansados
e blefados por teus sorrisos sem ritmo de todos os dias. Mata-o! Contempla a
luz do por do sol e vê, menina, que esse intervalo em que o sol se põe é
passageiro, assim como tua vida e tuas mágoas! É tudo passageiro, e, talvez,
seja por esse caminho que a vida se faça em profusão de luz e beleza.
Pega
as madeiras de tua coragem e rasgas os portões e a cerca do sertão de tua vida.
Vais, sem medo de se cortar, e de ficar suja pelo ferrugem dos choros contidos.
Vais menina! Mata esse demônio nu, que divide diariamente a luz do sol com tua
pele, e voas bem alto para nunca mais voltar. Voas, voas que talvez onde
chegares possas me encontrar, agora sem o demônio a nos refugar as almas. E
quando chegares, bate na porta das nuvens que estarei te esperando de braços
abertos e, dessa vez, sem sangue, apenas e só, AMOR.
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