Embora fosse agradável, as suas leituras diárias noturnas não inibiam seu corpo de sentir o suor escorrendo por sua pele e molhando em mesma aparência de lavagem do primeiro contato da roupa com o tanque de lavar, naquele momento em que a água começa a entrar nas vísceras do emaranhado de linhas, a sua velha blusa de dormir. A menina tinha algumas velhas blusas de dormir, de várias cores que o passar dos anos não conseguiu desvanecer: azul marinho, amarelo, azul mais claro que o marinho, branco com azul e recentemente mais duas propriedades, uma branca e uma laranja.
Mesmo
com o suor já a fazendo perceber que estava sentada no sofá maior da sala-de-estar
e não nas nuvens, nos ambientes dos personagens ou em imaginações sólidas para o
coração que vez por outra se acelerava, Mabelle ainda prosseguiu pela leitura
por mais três pingos de suor. Levantou-se e ficou em pé durante algum tempo
observando as pequenas muriçocas zonzarem ao lado daquelas tábuas de madeira e
vidro que botam no meio da sala-de-estar em todas as casas, às vezes elas são
feitas de material menos convencional, numa mais arriscada aceitabilidade para
o público visitante da casa, ou mesmo feitas apenas de madeira ou de vidro. Mas
ali para o Pai e a Mãe de Mabelle, elas eram feitas de madeira e vidro seguindo
os milhões de modelos parecidos, postos em vitrines de grandes lojas de decoração
ou mesmo levando o mormaço do sol, naquele momento em que ele fica em cima de
nossas cabeças, nas lojas populares do centro da cidade. O casamento das tábuas
de madeira com as tábuas de vidro era de uma aparente atual concepção
decorativa, mas que mesmo assim se exibia em quinas retas pelos cortes
retangulares. Mabelle olhou para os sujeitos que por hora a nutriam em letras,
tinta e papel, e seguiu para a cozinha, já com as costas menos molhadas por uma
intervenção das mãos e do antebraço, e, portanto, com esses membros ainda
úmidos quando segurava o copo que se enchia de água.
Observava
a água do botijão azul munido de um papel grudado em seu meio, com uma palavra que
parecia mais onomatopeia pela quantidade de vogais; era o nome comercial da
empresa que fornecia essa água, líquido agora percebido em pequenas ondas a
formarem-se, ele estava mexendo-se de um lado a outro de seu diâmetro circular,
que pacientemente Mabelle esperava depositar-se em seu copo vermelho-cereja.
Agora o botijão dava o arroto típico dos botijões que estão em processo de
usurpação pelo indivíduo sedento de água mineral. Mabelle estava esperando por
esse momento e com um sorrisinho de gato observou as bolhas aparecerem, causadoras da falta
de educação do botijão com água. É um mergulho da água dentro dela mesma por
causa do ar que vai aparecendo à medida que mais pessoas sedentas saciam sua
sede, primeiro é o ar que abre caminho, depois vem à água preencher o vazio do
ar – pensava os olhos e os cílios brincalhões de Mabelle, enquanto seu nariz,
parte de suas bochechas e todo o seu lábio superior era coberto pelo copo em
redondo vermelho-cereja, mas era um redondo que se ia afinando até a sua base,
assim como era Mabelle. Os seus olhos eram observados pelo botijão com bolhas.
Momentaneamente
saciada e já prevendo as gotículas a se materializarem em machas de suor na sua
blusa, amarela cor de sol naquela noite que parecia a alma gêmea da camisa,
Mabelle seguiu caminho para o sofá também amarelo, mas esse era cor de
queimado, e o uso da expressão ‘seguir caminho’ se faz muito mais pela enorme
diversidade de floresceres que habitavam na cabeça de floresta de Mabelle e que,
portanto davam um volume ao seu caminho, do que pelo próprio percurso mínimo
entre a cozinha e a sala, naquele apartamento térreo.
Era
noite e o apartamento voltava à sua casa. O já conhecido silêncio cheio imergia
facilmente nas acepções de Mabelle. O ranger da cadeira parecia ter o peso de
um elefante com a tromba cheia de água. Assim como o som do arroto do botijão
de água era audível do quarto dos pais da menina Mabelle. A TV estava
desligada, todas as luzes da casa estavam apagadas, com exceção da luz que nutria
as palavras da leitura da menina. O relógio faria o barulho que causava outrora
a irritação de Mabelle na hora da dormida. Hoje, o mesmo relógio encontra-se no
banheiro do lado esquerdo do quarto de Mabelle, mas não causa mais o
descontrole da menina loira dos olhos castanhos. Ela aprendeu a olhar o tempo
sem se incomodar com o barulho que ele faz. Podiam-se ouvir os poucos carros que passavam
na pista, alguns desesperados e fotografados pelo radar. O silêncio falava e
Mabelle continuava a ler muitas palavras escritas e a não suar as palavras
faladas. Sem vento e com o calor de sopro deSertões, o cabelo, que quando em
sua meninice nomeavam-no amarelo, da menina não parecia ligar para os pés
gelados de seu corpo.
As lentes de seus
óculos estavam arranhadas e já maltratadas, menos do que o período de seu uso
do que pelas inúmeras quedas – que acabavam por desgastar a armação – e
limpezas indevidas feitas pela pressa de Mabelle em ver o mundo em alta
definição; fora nesses termos que ela se expressara ao iniciar pela primeira vez
a transa entre os óculos e seus olhos, enquanto seu pai dirigia o carro na
movimentada avenida de um dos inúmeros aglomerados de cimento, porcelanato e
sacolas que eram chamados por todos convencionalmente de shoppings centers.
Uma agradável sensação de não ver mais o mundo em telas impressionistas. Era
através dos óculos, já humanos, que Mabelle via o mundo.
Enquanto lia, a menina
além de suor, brotava poesia: o castanho do que era mais nítido e preciso nela
dizia, leve-me, deixe-me velejar onde eu possa jorrar o que de mim está cheio e
que vazio aparenta ser, para assim, agarrar-me, já leve, em mim mesma; leve-me,
te peço, que agora já estarei leve. Para
não deixar que o sol da manhã a visse, Mabelle como bom auspício, seguiu para o
caminho da cama, passando pelo relógio numa rápida trilha, já nutrida de muitas
palavras, e chegando ao calor gostoso, com o lençol de abraço, de sua cama.
Mabelle deitou-se e dormiu leve.
Os dias naquele
apartamento eram noites desveladas. O silêncio era o Pai, a Mãe e o Avô, as
palavras das folhas impressas de Mabelle, as filhas. E era ali que Mabelle sabia
de sua diatribe.
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