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quarta-feira, 17 de abril de 2013

A casa do silêncio

 Mabelle era só olhos. Sentada no sofá, percorrendo por linhas que tempos atrás, não muito distantes, ou mesmo muito distantes, foram paridas pela tinta preta das gráficas, seus lábios em intervalos de especulações, dúvidas e sorrisos – todas essas emoções tão íntimas de Mabelle, mas feitas em ações e por pessoas que nem sequer existiam ou faziam da possibilidade de encontro físico uma mera divagação – apertavam-se ou abriam seus braços para pôr a língua de cobra para fora, como quem sonda a temperatura do ambiente para familiarizar-se com a temperatura da presa e em silencioso ataque deglutir todas as suas partes; é que Mabelle comia as palavras naquele momento. Era quase possível ouvir-se o barulho do lubrificante ocular a cada pendular de olhos da menina pequena e loira, enquanto lia gostosamente as páginas de livros ou revistas, ou mesmo livros e revistas. Mabelle gostava de tê-los por perto mesmo quando já em mãos de um, deleitava-se ao findar em momentâneo a leitura para observar aqueles outros montes de palavras dispostos ao seu aconchego, quase lhes tocando a pele, como um abraço Mabelle sentia a sensação de estar sendo abraçada, era por letras.

Embora fosse agradável, as suas leituras diárias noturnas não inibiam seu corpo de sentir o suor escorrendo por sua pele e molhando em mesma aparência de lavagem do primeiro contato da roupa com o tanque de lavar, naquele momento em que a água começa a entrar nas vísceras do emaranhado de linhas, a sua velha blusa de dormir. A menina tinha algumas velhas blusas de dormir, de várias cores que o passar dos anos não conseguiu desvanecer: azul marinho, amarelo, azul mais claro que o marinho, branco com azul e recentemente mais duas propriedades, uma branca e uma laranja.



Mesmo com o suor já a fazendo perceber que estava sentada no sofá maior da sala-de-estar e não nas nuvens, nos ambientes dos personagens ou em imaginações sólidas para o coração que vez por outra se acelerava, Mabelle ainda prosseguiu pela leitura por mais três pingos de suor. Levantou-se e ficou em pé durante algum tempo observando as pequenas muriçocas zonzarem ao lado daquelas tábuas de madeira e vidro que botam no meio da sala-de-estar em todas as casas, às vezes elas são feitas de material menos convencional, numa mais arriscada aceitabilidade para o público visitante da casa, ou mesmo feitas apenas de madeira ou de vidro. Mas ali para o Pai e a Mãe de Mabelle, elas eram feitas de madeira e vidro seguindo os milhões de modelos parecidos, postos em vitrines de grandes lojas de decoração ou mesmo levando o mormaço do sol, naquele momento em que ele fica em cima de nossas cabeças, nas lojas populares do centro da cidade. O casamento das tábuas de madeira com as tábuas de vidro era de uma aparente atual concepção decorativa, mas que mesmo assim se exibia em quinas retas pelos cortes retangulares. Mabelle olhou para os sujeitos que por hora a nutriam em letras, tinta e papel, e seguiu para a cozinha, já com as costas menos molhadas por uma intervenção das mãos e do antebraço, e, portanto, com esses membros ainda úmidos quando segurava o copo que se enchia de água.

Observava a água do botijão azul munido de um papel grudado em seu meio, com uma palavra que parecia mais onomatopeia pela quantidade de vogais; era o nome comercial da empresa que fornecia essa água, líquido agora percebido em pequenas ondas a formarem-se, ele estava mexendo-se de um lado a outro de seu diâmetro circular, que pacientemente Mabelle esperava depositar-se em seu copo vermelho-cereja. Agora o botijão dava o arroto típico dos botijões que estão em processo de usurpação pelo indivíduo sedento de água mineral. Mabelle estava esperando por esse momento e com um sorrisinho de gato observou as bolhas aparecerem, causadoras da falta de educação do botijão com água. É um mergulho da água dentro dela mesma por causa do ar que vai aparecendo à medida que mais pessoas sedentas saciam sua sede, primeiro é o ar que abre caminho, depois vem à água preencher o vazio do ar – pensava os olhos e os cílios brincalhões de Mabelle, enquanto seu nariz, parte de suas bochechas e todo o seu lábio superior era coberto pelo copo em redondo vermelho-cereja, mas era um redondo que se ia afinando até a sua base, assim como era Mabelle. Os seus olhos eram observados pelo botijão com bolhas.

Momentaneamente saciada e já prevendo as gotículas a se materializarem em machas de suor na sua blusa, amarela cor de sol naquela noite que parecia a alma gêmea da camisa, Mabelle seguiu caminho para o sofá também amarelo, mas esse era cor de queimado, e o uso da expressão ‘seguir caminho’ se faz muito mais pela enorme diversidade de floresceres que habitavam na cabeça de floresta de Mabelle e que, portanto davam um volume ao seu caminho, do que pelo próprio percurso mínimo entre a cozinha e a sala, naquele apartamento térreo.

Era noite e o apartamento voltava à sua casa. O já conhecido silêncio cheio imergia facilmente nas acepções de Mabelle. O ranger da cadeira parecia ter o peso de um elefante com a tromba cheia de água. Assim como o som do arroto do botijão de água era audível do quarto dos pais da menina Mabelle. A TV estava desligada, todas as luzes da casa estavam apagadas, com exceção da luz que nutria as palavras da leitura da menina. O relógio faria o barulho que causava outrora a irritação de Mabelle na hora da dormida. Hoje, o mesmo relógio encontra-se no banheiro do lado esquerdo do quarto de Mabelle, mas não causa mais o descontrole da menina loira dos olhos castanhos. Ela aprendeu a olhar o tempo sem se incomodar com o barulho que ele faz.  Podiam-se ouvir os poucos carros que passavam na pista, alguns desesperados e fotografados pelo radar. O silêncio falava e Mabelle continuava a ler muitas palavras escritas e a não suar as palavras faladas. Sem vento e com o calor de sopro deSertões, o cabelo, que quando em sua meninice nomeavam-no amarelo, da menina não parecia ligar para os pés gelados de seu corpo.

As lentes de seus óculos estavam arranhadas e já maltratadas, menos do que o período de seu uso do que pelas inúmeras quedas – que acabavam por desgastar a armação – e limpezas indevidas feitas pela pressa de Mabelle em ver o mundo em alta definição; fora nesses termos que ela se expressara ao iniciar pela primeira vez a transa entre os óculos e seus olhos, enquanto seu pai dirigia o carro na movimentada avenida de um dos inúmeros aglomerados de cimento, porcelanato e sacolas que eram chamados por todos convencionalmente de shoppings centers. Uma agradável sensação de não ver mais o mundo em telas impressionistas. Era através dos óculos, já humanos, que Mabelle via o mundo.

Enquanto lia, a menina além de suor, brotava poesia: o castanho do que era mais nítido e preciso nela dizia, leve-me, deixe-me velejar onde eu possa jorrar o que de mim está cheio e que vazio aparenta ser, para assim, agarrar-me, já leve, em mim mesma; leve-me, te peço, que agora já estarei leve.  Para não deixar que o sol da manhã a visse, Mabelle como bom auspício, seguiu para o caminho da cama, passando pelo relógio numa rápida trilha, já nutrida de muitas palavras, e chegando ao calor gostoso, com o lençol de abraço, de sua cama. Mabelle deitou-se e dormiu leve.

Os dias naquele apartamento eram noites desveladas. O silêncio era o Pai, a Mãe e o Avô, as palavras das folhas impressas de Mabelle, as filhas. E era ali que Mabelle sabia de sua diatribe.






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